sábado, 17 de dezembro de 2011

Muito além do grau de parentesco


Por Vinícius Vieira

Já se imaginou ficar preso com sua família na casa de Gilberto Freyre? Ou mesmo ter ouvido os belos versos do boêmio poeta pernambucano evocados pelo próprio Ascenso Ferreira? Se preferir a cultura popular, que tal conversar sobre o baião com o mestre Luis Gonzaga e seu parceiro de baião, Zé Dantas? Caso prefira o inédito, queria ter presenciado Ary Barroso dançar como uma baiana Aquarela do Brasil, o samba-exaltação que viria a se tornar o mais famoso dessa categoria? Parece impossível a muitos, mas não para Anna Maria Cascudo Barreto, 75, que presenciou todos esses momentos com figuras antológicas do cenário artístico brasileiro. É filha de Luís da Câmara Cascudo, historiador e antropólogo que mais se dedicou ao estudo da nossa cultura e cujo conjunto da obra está calculado em mais de dez mil volumes, aproximadamente. Por causa disso, o nome de seu pai, sem dúvida, é o mais lembrado no Rio Grande do Norte nessa categoria.
Herdou dele a propriedade para falar sobre a cultura popular.“Tudo é cultura popular. O papel dela na formação da nossa sociedade é múltiplo e pode ser encontrado no cotidiano. O fato de eu ter-lhe oferecido um cafezinho ou água antes de iniciar a entrevista é estudado pelo folclore e pela cultura popular”, teoriza. Herdou, também, a paixão ao falar sobre Natal, sua história e dois elementos até hoje importantes para os natalenses: o Forte dos Reis Magos e o Rio Potengi. A fala de Anna Maria é tão carregada de emoção e detalhes que nos sentimos transportados para o momento da fundação da cidade, no final do século XVI “Sou apaixonada e fascinada pela história de Natal. Uma vez, meu pai, em 1947, me pediu para olhar o rio com os olhos dos primitivos habitantes. Pediu-me, também, para ver o desvendar dos portugueses e como eles ficaram assombrados com a beleza da cidade e, assim, construíram o Forte num local estratégico”, diz.   
Mas o fato de ser filha de Câmara Cascudo não facilitou tudo. Seu pai fazia questão de que a filha seguisse caminho com suas próprias pernas. “Tive a alegria de ser aluna de Luís da Câmara Cascudo, mas, ao mesmo tempo, ele não escrevia nada para mim. Queria que eu fizesse as coisas com as minhas próprias asinhas. No começo, achei péssimo, mas hoje agradeço a Deus pela atitude dele”, relembra.
Foi com esforço que conquistou cadeiras na Academia Norte-riograndense de Letras, na Academia Brasileira de História, Arte e Cultura e na Academia de Letras Jurídicas, além de ser sócia de outras Instituições que também têm a finalidade de cultivar a língua portuguesa. “Cada prêmio ou conquista foi um momento de muita emoção, cada um foi um instante de ternura e foi um momento de muita gratificação”. Mas Anna Maria lembra carinhosamente a posse na Academia Paulista de Letras, quando foi ouvida por Lygia Fagundes Telles, Ruth Rocha, pelo crítico de literatura Fábio Lucas e o poeta Paulo Bonfim.


Anna Maria fala sobre suas experiências à revista 84  (Foto: Vinícius Vieira/Revista84)

Pioneirismo no jornalismo e no Judiciário

Curiosidade aguçada e o estímulo familiar foram, sem dúvida, os motivos pelos quais Anna Maria adquiriu paixão pela leitura, que a acompanha até hoje. Essa paixão cultivada desde cedo foi responsável pelo ingresso dela na área do jornalismo aos 13 anos, fato pioneiro. Na época, ela foi convidada para revisar matérias do tradicional jornal “A República”, ganhando, algum tempo depois, uma coluna sobre música, arte e moda.
Já no período da ditadura militar, foi convidada pelo reitor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte à época, Genário Fonseca, para apresentar um programa na recém-inaugurada TV Universitária: o Semanários. Voltado à arte e à cultura, o programa foi logo destinado a entrevistas com pessoas que se destacavam no contexto da cultura popular. Teve de enfrentar alguns preconceitos por causa disso. “Uma vez, o diretor da TV Universitária havia considerado que eu tinha levado muita ‘gentinha’ para a TV, mas na realidade eram dançarinos de bambelô. Antes de nós irmos ao ar, o diretor apagou as luzes e ainda me disse que eu tinha amizades muito estranhas. Eu respondi que eram artistas que, infelizmente, não eram famosos”. Mas a carreira na TV também foi marcada por recordes. Segundo Anna Maria, numa tarde em que mostrava um escultor de Ceará-Mirim confeccionando uma peça, seu Semanários teve mais telespectadores potiguares do que o programa apresentado pelo avassalador de audiência Abelardo Barbosa, o Chacrinha.   
No Judiciário, após se formar em direito, foi a primeira mulher a atuar no Júri de Natal, como promotora adjunta. Quando assumiu definitivamente a Promotoria de Natal, Anna Maria relata que não observou atitudes preconceituosas. “Era muito carinhosa com os Juízes. Papai intercedeu por mim e todos foram muito cordiais, tanto é que me sentia como filha dos maiores juízes do Estado: Oscar Siqueira, Rosemiro Robson e Paulo Luz. Aprendi muito com eles”, lembra. Analisando toda a sua carreira, ela afirma que seu pioneirismo aconteceu normalmente, sem perceber de que se tratava de algo especial.

Relação com as Forças Armadas

Muitos dos prêmios, medalhas e homenagens recebidas durante seus 75 anos de vida advém das Forças Armadas. Anna Maria é neta do Coronel Francisco Justino de Oliveira Cascudo, da Guarda Nacional, atual Polícia Militar do Rio Grande do Norte. É na sua descendência que justifica sua paixão pelas Forças Armadas e comenta, em alguns de seus livros, que há uma relação mágica bilateral entre os militares e a Cidade do Natal.
A admiração pelo trabalho das Forças Armadas levou Anna Maria a se integrar ao Conselho da Fundação Rampa, a qual se dedica arduamente no resgate da participação de Natal na história da aviação mundial. “O Rio Grande do Norte tem uma história aeronáutica profunda e rica”, enfatiza, ao lembrar do vôo de mais de 49 horas, sem escalas, realizado por Carlo Del Prete e Arturo Ferrarim entre a cidade de Roma e o Brasil. O feito rendeu um presente de Mussolini aos potiguares, a Coluna Capitolina. Para Anna Maria, estudar e escrever sobre tal acontecimento rendeu uma medalha da Aeronáutica, devido ao ensaio de abertura do livro “Cavaleiros do Céu”.

 Trabalho no Ludovicus – Instituto Câmara Cascudo

Anna Maria é a presidente do Ludovicus – Instituto Câmara Cascudo, pessoa jurídica sem fins lucrativos, cuja sede foi, durante quase 40 anos, a residência oficial de Luís da Câmara Cascudo e onde o historiador produziu grande parte de sua obra relevante. Embora seja um local que salvaguarda importantes estudos sobre a cultura brasileira, todo o Instituto foi bancado com recursos próprios, através de venda de imóveis. O poder público não a procurou assim que o Instituto foi inaugurado, em 2007, mas atualmente ela foi agraciada com visitas da ministra da Cultura, Anna de Holanda, além das chefes do Executivo estadual e municipal. Anna Maria espera que as visitas sensibilizem os governantes a contribuir com o trabalho do Instituto. “Estamos fazendo um trabalho de digitalização das correspondências de Câmara Cascudo com Mário de Andrade, Assis Chateaubriand e Monteiro Lobato. Todas essas cartas digitalizadas serão um legado a nossos pesquisadores”, afirma. 
Para mantê-lo, existe uma loja no local, que disponibiliza obras da autoria de Luís da Câmara Cascudo e estudos feitos sobre ele por outros pesquisadores. O visitante também pode adquirir peculiaridades, como poesias musicadas e contos de cascudo em folhetos de cordel. Para entrar na casa com uma visita guiada, é cobrada uma taxa de R$ 3,00. 
Além de preservar e divulgar o patrimônio de seu pai, Anna Maria diz que o que a realmente motiva é a paixão pela cultura popular que adquiriu dele. Nesse sentido, ela convida todos a reconhecer o trabalho de Luis da Câmara Cascudo, pois “eu não sou somente a filha dele. Ele amou, estudou, valorizou os potiguares. Portanto, todos eles são filhos de Luís da Câmara Cascudo”.

O imponente Instituto Câmara Cascudo localiza-se na avenida homônima, na Cidade Alta
(Foto: Acervo do jornal Tribuna do Norte)


SERVIÇO: Instituto Câmara Cascudo

Endereço: Avenida Câmara Cascudo, 377, Cidade Alta – Natal/RN
Telefone: (84) 3222-3293 e (84) 3221-0131
Home Page para demais informações: http://www.cascudo.org.br


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