Por Andressa Carvalho Vieira
Sidney Trindade, cego desde nascença, tem formação tecnológica, é músico, pesquisador, fala três idiomas e trabalha desde os 24 anos
Demorei a perceber que Sidney Trindade era completamente cego quando em ocasião de nosso primeiro contato. Eu, uma voluntária iniciante em um projeto de ledores para cegos. Ele, um dos beneficiados e também colaborador veterano do grupo. As crônicas que narrava sobre episódios da sua condição de deficiente visual contrastavam com sua segurança, senso de direção, facilidade de deslocamento e bom humor. Ao menos a meu ver, até então, ignorante sobre o tema.
“Um dia um homem me ofereceu ajuda no IFRN. E eu nunca nego ajuda. Mas o rapaz segurou meu braço e foi me puxando, então eu disse: ‘Amigo, vamos fazer assim, eu seguro no seu ombro, vou sentindo seus passos e você vai me guiando, certo?’ Assim fomos andando, subindo alto, descendo alto, calçada, rampa, virando para um lado e outro. Quando chegamos ao destino, o homem falou para mim, em tom de surpresa: ‘Mas você é bem adestradinho, né?’ Dentro da ignorância dele, ele estava me fazendo um elogio, então eu ri e consenti. ‘Sim, amigo, eu sou sim adestrado!”, contava um Sidney descontraído, que consegue fazer piada mesmo das situações que pareciam adversas.
“E o engraçado é quando acham que cego é surdo”, continuava. “Certo dia, fui comprar alguma coisa em uma loja e o atendente, quando percebeu que eu era cego, falou comigo quase gritando. Eu respondi mais alto ainda: ‘Fale um pouco mais alto, não estou entendendo não!” Sidney não era o tipo arrogante. Mas também passava longe do título de paciente. É um “tirador de onda”, como se define, e não perde o fio da piada, que, em merecidas vezes, pode aproximar-se ao sarcasmo.
Desde criança, brincou e driblou as situações adversas e intimidadoras. A primeira delas aconteceu no dia de seu nascimento. A mãe tinha apenas oito meses de gestação quando enfrentou um complicado trabalho de parto. A falta de oxigenação fez com que Sidney nascesse “roxo” e deixou como sequela a atrofia do seu nervo óptico, tornando-o cego. Apenas 45 dias mais tarde a mãe percebeu que havia algo de errado com a visão do filho recém-nascido. Após o desespero inicial, levou-o ao médico, que constatou que Sidney, de fato, era cego. A mãe foi recomendada a criar Sidney da mesma forma que criava seus dois irmãos mais velhos, já que ele era praticamente uma pessoa normal. Ela levou ao pé da letra. Sidney cresceu jogando bola, andando de skate, patins, bicicleta e pegando onda em Ponta Negra. Aos 4 anos, Sidney ganhou uma bicicleta e andava tranquilamente pela Av. Capitão Mor Gouveia, que, na época, ainda não havia sido duplicada. Situava-se por sons e movimentos, além de já conhecer bem a região, onde sua vó morava. Quando precisava ir a lugares mais distantes, permitia que a irmã fosse à frente e, pelo barulho da bicicleta dela, ele reconhecia obstáculos e curvas. Nunca esbarrou em nada.
Em sua rotina de trabalho, que inclui, aulas de espanhol, tocar em orquestra e golbol, além de ser o namorado a Isabel.
A mãe, Dona Miriam, era professora. Quando Sidney tinha por volta dos seis anos, ela identificou a necessidade de alfabetizá-lo. Abriu mão da vida profissional e começou a desenvolver os mais variados métodos para isso: colava linhas em papel para que ele sentisse o formato das letras, comprava letras de plástico, matrizes de letras, sempre procurando novos materiais. Na época, Sidney ainda enxergava pouco, entre 3 e 5% (hoje ele só consegue enxergar a luz). A mãe colocava-o em um quarto escuro e com um pincel atômico preto e uma cartolina branca ela o fazia enxergar os formatos das letras. Assim ele obteve conhecimento e acostumou-se com os símbolos do alfabeto latino. Na época, ainda não conhecia o braile, alfabeto especial e adaptado para cegos.
Após alfabetizá-lo, Miriam decidiu que deveria tentar matriculá-lo em uma escola normal. Sidney foi aceito no Instituto de Alfabetização e Arte (hoje, CEI), mas o despreparo da equipe da instituição para recebê-lo fez com que não ficasse muito tempo ali. “Os professores não deixavam eu fazer o que eu fazia em casa”, conta. “Que era o quê?”, pergunto. “Tudo!”, ele responde como se fosse óbvio. “Eu ia para a aula e pediam para que eu sentasse numa cadeira. Quando eu levantava, corriam dois, três, perguntando o que eu queria. Eu não brincava com as outras crianças. E criança gosta é de brincar, não é?” Quando a mãe perguntou se ele estava gostando do colégio, Sidney foi sincero. Não gostava pois não conseguia sentir-se normal em meio a todo aquele cuidado excessivo. Pela experiência que teve, hoje ele defende que sejam mantidas as escolas específicas para deficientes visuais.
Sidney continuou sendo educado pela mãe, em casa, até que, em abril de 1984, quando tinha 10 anos, surgiu a ideia de levá-lo para o Instituto dos Cegos. Como a mãe já o havia alfabetizado, Sidney encontrou um único empasse para nivelar-se com os alunos de primeiro ano: não sabia o braile. Mas isso não o impediu de acompanhar a turma. Paralelo ao conteúdo programado para o primeiro ano, a professora da escola começou a ensinar-lhe o braile em várias lições. Acostumado com os métodos de ensino da mãe, Sidney levou o alfabeto para casa e não precisou de mais de três dias para aprendê-lo por completo, inclusive os números e demais caracteres. Permaneceu no Instituto dos Cegos por 4 anos, até o final do Ensino Fundamental I.
Sidney passou um ano sem estudar e, aos 16 anos, entrou no supletivo a fim de concluir o Ensino Fundamental II. Não teve paciência para todas as provas do supletivo e preferiu fazer os “provões”: uma prova de cada disciplina e se passasse estaria aprovado no nível básico. Toda tarde, a mãe sentava e lia um pouco do conteúdo para ele e, em um ano, após prestar e passar em todas as provas, concluiu o 1º grau. Paralelo a isso, Sidney tinha aulas de música do conservatório Frederico Chopin, onde estudava teclado popular.
Após passar mais dois anos sem estudar, resolveu fazer o Ensino Médio no Colégio Estadual Padre Miguelino. Quando concluiu o nível médio, devido à escassez de material e mão de obra qualificada na época, Sidney não quis mais estudar. Já músico profissional, começou a tocar durante a noite e fazer cursos a fim de qualificar-se. “Como estava sem estudar, se me dissessem que havia um curso de enrolar cordão em prego, eu fazia”, conta. Alguns dos cursos deram a Sidney habilidade em informática e isso fez com que ele fosse convidado, em 2001, a dar aulas na Associação dos Deficientes Visuais.
“Fiquei lá na Associação até 2003, saí porque todos os deficientes já tinham passado pelas minhas mãos e o povo estava demorando a cegar. Daí não tinha mais aluno”, brinca. Logo em seguida, Sidney recebeu o convite de acompanhar um músico de Natal, também cego, o cantor e compositor José Barros. Aproveitou para fazer também um curso de idiomas de Inglês no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN). No começo de 2006, resolveu prestar vestibular na Universidade Federal do Rio Grande do Norte para bacharelado em piano, já que, agora, havia mais facilidades na busca por informações para pessoas cegas. Conseguiu uma bolsa no curso extensivo para vestibular do Colégio e Curso CDF e dedicou-se a estudar. Incentivado pela professora do curso de Inglês, resolveu também prestar vestibular para o curso de Tecnologia em Desenvolvimento e Análise de Sistemas, na época, Tecnologia em Desenvolvimento e Software, no IFRN.
Quando passou no vestibular do IFRN, desistiu de tentar bacharelado em Música. Foi convocado para uma reunião no IFRN, em que professores e funcionários de cargos importantes no curso tentaram convencê-lo de que aquele não seria o melhor curso para um deficiente visual, por ser muito difícil. Sugeriram a Sidney escolher outro curso dentro de qualquer departamento para que fosse transferido. Ele escolheu permanecer no curso, mesmo com as dificuldades que eram apresentadas. Contou com vários professores aliados no decorrer do curso, que “compraram a ideia” de ter um aluno deficiente visual e, a cada nota boa, Sidney provava conseguir cumprir a responsabilidade que havia assumido. “Quando fechei uma prova de Eletrônica Digital, no dia seguinte, até o porteiro da escola me deu parabéns. Mas também aconteceu de ser reprovado em uma disciplina por dois décimos na média. Ninguém passava a mão na minha cabeça porque eu sou cego”.
Sidney escolheu para Trabalho de Conclusão de Curso desenvolver algo que pudesse ajudar a pessoas que são iguais a ele com dificuldades que ele também enfrenta. Daí surgiu o e-guia, aplicativo para celular que ele aperfeiçoa até hoje. Trata-se de um sistema digital de identificar ônibus. A função é avisar, através de um aplicativo no celular, quanto tempo falta para que determinado ônibus chegue a uma parada específica. O projeto auxiliaria não só pessoas cegas como todos aqueles que dependem do sistema de transporte coletivo. O primeiro protótipo do e-guia foi apresentado no Fórum Mundial de Educação Tecnológica no final de 2009, em Brasília.
Após o término da graduação, Sidney entrou no Mestrado de Engenharia de Computação na UFRN como aluno especial e começou a inscrever-se em concursos. Logo passou no concurso do Ministério Público da União, e desistiu do Mestrado, por receio de ser chamado para assumir o cargo e não conseguir concluir o curso. Enquanto o chamado não vinha, foi contratado pela Superintendência de Informática da UFRN para tornar o sistema SIGAA acessível para deficientes visuais. Hoje em dia trabalha para a Funpec no Laboratório de Acessibilidade da UFRN, cuidando da parte tecnológica que necessita de mão-de-obra específica, como a impressora braile.
Embora nunca tenha tido problemas com empregos, Sidney afirma que o mercado de trabalho para deficientes visuais, em geral, é muito difícil. “Se você não fizer um concurso, não tem chance. A imagem que a sociedade tem de um deficiente visual é aquele coitadinho que fica em frente às Americanas pedindo esmola. E alguns querem mesmo ser coitados. Tenho raiva desse tipo. Cego não é coitado.”, explica.
"O cuidado excessivo faz com que eu não me sinta normal".
Aos 35 anos, além do trabalho e das pesquisas para o e-guia, Sidney faz curso de Espanhol no IFRN, toca na orquestra de violão da UFRN, joga golbol (espécie de futebol para deficientes visuais) e ainda tem uma namorada há 12 anos, Isabel. “Vocês homens são todos iguais mesmo. Sempre enrolando as mulheres. Já está na hora de casar, não?”, pergunto, em tom de brincadeira, ao fim da entrevista. “É tudo um ciclo”, ele responde. “Depois do casamento, vem o divórcio. E eu ainda quero ficar com ela algum tempo, então não caso”. Quase me convenceu.
Ofereci a Sidney uma carona para casa. Eu havia ganhado um carro há dois dias e ainda fazia confusão com os caminhos. Ele foi me guiando pela UFRN até a sua casa, que não ficava tão longe, no bairro chamado Potilândia. Avisava exatamente onde dobrar e sabia mais detalhes sobre o caminho que eu fazia quase todos os dias que eu mesma. Durante o percurso, me perdi. Sidney, pacientemente, explicou-me como voltar para o caminho certo. Com dois olhos funcionando razoavelmente bem e duas lentes que completavam a potência deles, senti-me mais deficiente que Sidney, “cego” desde sempre.
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